terça-feira, 19 de novembro de 2013

Com Os Olhos Fitos na Vida Consagrada Leiga

Salve Nossa Senhora da Conceição Aparecida

Embora as expressões de Vida Consagrada sejam integrantes da história da Igreja, atualmente, muito se debate sobre as novas formas que surgiram e suas práticas. Questiona-se largamente se seriam adequadas, se as liberdades e prerrogativas seriam aceitáveis e, especialmente, o enquadramento do leigo, como ele se processaria e qual a natureza. Sabe-se que estes movimentos preconizam uma vida de entrega completa e total a Deus, seguindo o exemplo de Cristo e que boa parte de seus integrantes são leigos, integrados, incorporados e justificados pelo batismo. É natural, porquanto, que exista ainda certa resistência e questionamento porque, historicamente, a questão da participação do leigo somente foi mais positivamente tratada a partir do Concílio do Vaticano II, que abriu as portas para o reconhecimento e valorização do laicato e, especialmente, após a Exortação pós-sinodal Vita Consecrata, realizada no papado de João Paulo II, que é tida por muitos como um dos documentos emblemáticos a respeito da Vida Consagrada e, consequentemente dos leigos[1].

Estas comunidades dedicam-se ao exercício de um tipo de vida totalmente dedicado a Deus e são consideradas um dos modelos exemplares de prática do evangelho e da inspiração do mesmo na Terra, uma vez que reproduzem muito do modelo inicial que foi experimentado, ainda na presença de Cristo. A vida em comunidade é um dos pontos centrais e, em alguns casos, os consagrados repartem-se do mundo e abandonam tudo para viver em comunidades integrais ou, em outros, mantêm-se em atividade no espaço secular, mas compartilham de comunidades que valorizam os conselhos evangélicos e sua prática radical. Aliás, a prática radical e os votos são aspectos comuns nos dois tipos de vida consagrada, as comunidades de Vida e as de Aliança[2].

As novas formas de Vida Consagrada não são substitutivas às anteriores, tampouco as desmerecem – de mesmo modo que os carismas. A junção, a comunhão entre o antigo e o novo é, em verdade, um dos desafios presentes mais providenciais para a preconização do Evangelho, de modo que se possa atender às demandas de um mundo individualista, hedonista e egocêntrico, pautado no consumo, na sexualidade e na satisfação imediata. De um modo inspiracional, propõem uma forma de vida que vai contra estes princípios e orienta-se pela castidade, obediência e desprendimento. Em inúmeros documentos eclesiais, a questão da vida consagrada é vista de um modo positivo quanto ao seu papel referente ao engrandecimento e desenvolvimento da missão da Igreja. Contudo, o principal ponto de impasse é o leigo e a sua integração. As bases que permitem a sua participação ativa na forma destas comunidades e o exercício de seus votos e organização é unicamente o batismo e o chamado para a atuação nesse tipo de vida. O leigo não escolhe ser consagrado: assim como muitos na história da Igreja, ele é chamado para tanto e segue no atendimento a essa vocação divina. Por conta disso, há os votos, a organização própria e as regras são parte dessas vivências[3].

A Vida Consagrada para os leigos é orientada como uma forma especial e própria de vida devocional, na qual a entrega às orientações de Cristo é radical, pontual e completa. Os Conselhos Evangélicos e sua obediência são as bases e há preceitos bastante interessantes como o que coloca o Espírito Santo e o chamado para integrar este tipo de vida como orientações capacitantes. Então, uma vez escolhido o indivíduo e feito o chamado, sempre divino e nunca humano, ele, através da provisão celestial, é diligentemente preparado para ter o que necessita àquilo que lhe foi dado como missão. Estes movimentos encontram-se em pleno crescimento, seja pela demanda do mundo de uma resposta que vá conta aquilo que preconizam os valores atuais, seja pela determinação vocacional dos que ingressam nesta proposta de vida. O leigo, com isso, acabou ganhando representatividade e reconhecimento. Atualmente, ainda que rigidamente observados e normatizados, esses novos movimentos eclesiais são largamente valorizados como forma de disseminação da missão da Igreja e, portanto, apreciados. Se no passado, os Consagrados tinham por principal orientação a profecia e o serviço a Deus, atualmente, é a questão inspiracional e a proposição a um modelo de vida diferenciado, voltado ao sagrado e criado sob medida para as questões atuais mundanas é a proposição das novas formas de vida consagrada. Eles se diferem dos antigos e, também no que tange à postura do leigo e sua participação, respondem à realidade vivenciada no presente. Então, há a liberdade, o diálogo e a alegria, mas também um rico repertório de normas e formação para que possam corresponder fielmente à personalidade da Igreja e à sua identidade de fé cristã[4].

Considerando o novo e o antigo testamento, procurando contrapor como era a vida consagrada, percebe-se que antes ela ocorria pelo contato direto e ação objetiva de Deus em relação ao homem, mas que após Jesus, o exemplo e o desejo de seguir a Cristo passaram a ser o fator de orientação dessa decisão e objetivo.

E por qual razão a questão do leigo é tão importante de ser ressaltada e valorizada, a ponto de ser uma espécie de bandeira fundamental dos novos movimentos eclesiais? Porque em si, representa o fato de que o acesso a uma vida consagrada é possível para todos, desde que por Deus sejam escolhidos e que tenham o sacramento do batismo. Que questões de integração por parte de alguns do Clero não são barreiras para impedir a decisão de uma vivência consagrada. Além disso, evocam as bases primitivas do cristianismo e, bem mais que isso: outros, enquanto Cristo esteve na Terra, aderiram ao chamado de seguir a Cristo, modificando essencialmente suas vidas. Estes, em maioria, não eram do Clero ou hierarquia da Igreja: eram pessoas comuns que foram chamadas e modificaram a sua existência e orientação de suas vidas para rumar no caminho de Cristo. Se o Clero tem suas competências, mediante as quais exerce suas funções e permite o andamento geral da organização da Igreja, o leigo também tem suas prerrogativas e, cada qual a sua forma e espaço podem colaborar para a missão e para o anúncio do Evangelho. Então aqui novamente se frisa: a vida consagrada para leigos não tenta sobrepor-se às ordens religiosas ou movimentos preexistentes ou tradicionais. Apenas soma-se a eles, com sua natureza própria, mensagem e propósitos.

Então, a vida consagrada para leigos não é uma novidade ou inovação, mas parte da história e personalidade do cristianismo. A condição ativa do leigo, que o leva a contribuir grandemente às proposições da Vida Consagrada no presente, o posiciona como chave da disseminação do evangelho e aspecto missional da Igreja no presente. Não que a ação laical seja a grande e única solução ou expressão da Igreja no presente, mas ela faz parte do todo que se constitui na resposta de enfrentamento da fé cristã aos desafios do presente. E que também por essa razão, bem como por seu percurso histórico e geral, devem ser dignos de reconhecimento e alocação, valores que recebem da Igreja atual, com sua atenção e controle para garantir a fidelidade e identidade genuína dos novos movimentos[5].

Mas as perspectivas e os desafios presentes que encontram as novas formas de vida consagrada não são menores do que já foi a resistência ou desconhecimento acerca de sua origem e objetivos. Inseridas em um mundo que apregoa valores diferentes, completamente opostos aos que orientam, um dos maiores desafios que envolvem os novos movimentos eclesiais é o desenvolvimento de uma percepção apurada acerca da relação consagrado x aspectos seculares. Em busca de seguir o exemplo de Cristo e envolverem-se nas necessidades humanas e nos mais variados tipos de expressão de vida e escolhas, o consagrado pode insurgir-se em situações que venham a enfraquecer sua percepção e fé prática ou que, cedo ou tarde, possam trazer-lhe uma falsa percepção de segurança quanto a sua posição no segmento de Deus, fazendo com que abra mão da vigília constante. Por essa razão, esse desafio presente envolve o reavivamento do sentido de conflito, de batalha espiritual, tendo como eixo a ascese[6].

Nessa condição, em uma constante submissão e negação individual, o consagrado consegue perceber melhor os aspectos nos quais é menos favorecido e oferecer uma resposta e postura mais consistente. A adoração a Jesus sacramentado,  a participação diária na Santa Missa, a leitura orante através da lectio Divina, a escuta da Palavra de Deus e oração constantes, bem como de desenvolvimento e formação contínuas, são as chaves para a purificação das relações seculares e diversas que terão de ser desenvolvidas no percurso da vida do leigo consagrado, para que não venham a comprometer a sua qualidade devocional[7].

A obediência, por sua vez, é outra chave fundamental que inclusive encontra-se inserida em uma proposta ascética de vida. É um desafio instituir nas novas comunidades uma percepção e comportamento constantes de desprendimento e entrega a Cristo, exceto pelo reconhecimento de que os convocados à vida consagrada devam entregar-se a um processo de formação constante, que os capacite e fortaleça. Os carismas dos fundadores e os que regem o exercício das práticas das comunidades devem ser mantidos sob fidelidade – outro desafio que requer o conhecimento, estudo e dedicação. Desenvolver a ação e o ambiente para que o Espírito Santo aja é outra condição desafiadora. É preciso que os fundadores ou aqueles que tenham assumido seus carismas maternais e paternais do avivamento da fé estejam atentos e aptos para atuarem no fortalecimento e orientação dos seus. Mais que desafios teóricos ou resistências, as novas formas de vida consagrada têm de enfrentar um cenário que requer do novo consagrado uma postura mais ativa e vigilante, para manter a resposta de atender e seguir radicalmente a Cristo diante deste mundo e de seus valores. Muitas das condições que devem ser superadas na vida consagrada para leigos encontram-se dentro das próprias comunidades, agora que a maior parte dos passos determinantes de reconhecimento já foi dada pelo clero e hierarquia da Igreja. São questões de definição e autoconhecimento cuja existência pode-se explicar de modo quase natural, mas que também a perspectiva é de uma resolução progressiva, conforme a própria personalidade desses movimentos for se definindo. É o caso da percepção desigual entre a natureza das comunidades, sejam elas de vida ou de aliança, pontuando uma ou outra como melhor ou pior, ao passo que idealmente deve-se progredir para a visão equiparada, dado que cada qual tem a sua importância e funcionalidade, uma vez que até mesmo o Espírito Santo não se manifesta de uma forma única e imutável[8].

Também se deve superar o desejo de autonomia e de não sujeição, desenvolvendo profunda e voluntariamente o pensamento da comunhão eclesial, atuando de modo parceiro e diligente com a Igreja e sua missão, participando ativamente da vida da comunidade em que se está inserido e de suas questões religiosas. A opção pela adesão da vida consagrada leiga não significa, de modo algum e em tempo algum, a adesão a uma vida contemplativa e estática, afastada da Igreja e destinada a orientações próprias, voluntariosa. Pelo contrário. Destina-se ao constante e nem sempre simples desenvolvimento de uma comunhão eclesial e identidade, bem como o cuidado com a mesma, para que os novos movimentos reflitam a missão, o Evangelho e a fé cristã[9].

Assim, temos então que o Consagrado encontra-se sempre em uma missão cujo objetivo é o Evangelho, a obediência e o segmento a Cristo, seja ele leigo ou não. Como leigo, tem o encargo de levar ao mundo o exemplo da possibilidade e da adesão de uma vida com Cristo de modo satisfatório, não penoso. Tem a missão de refletir o sentido de Jesus, como humilde, simples, obediente, contido, sábio e completamente entregue e sujeito a Deus e seus desígnios. Uma missão construída com oração, devoção/adoração, vida ascética e formação, não de um modo contemplativo e passivo, mas sim ativo e atuante.

Por: Eliana Dalva / Formadora Geral da AM.

Formada em Teologia no Instituto Teológico João Paulo II. Campo Grande - MS.                   


[1] Cf. JOÃO PAULO II. Vigília de oração presidida pelo Papa João Paulo II durante o Encontro dos Movimentos Eclesiais e das Novas Comunidades, 1998; LANDRON. Novo millennio ineunte, 2004.

[2] Cf. CONGREGAÇÃO PARA OS INSTITUTOS DE VIDA CONSAGRADA E AS SOCIEDADES DE VIDA APOSTÓLICA. Instrução O serviço da autoridade e a obediência. Faciem, domine, requeiram, 2008 e FRATERNIDADE DAS NOVAS COMUNIDADES DO BRASIL. Novas Comunidades: primavera da Igreja, 2008.

[3] Cf. RATZINGER. I Movimenti ecclesiali e la loro collocazione teologica. In: Pontificium Consilium pro Laicis. I Movimenti nella Chiesa – Atti del Congresso Mondiale dei Movimenti Ecclesiali, 2011; BERARDINO, Op. Cit., 2012 e FERREIRA. Op. Cit., 2011.

[4] Cf. FERREIRA. Op. Cit., 2011; JOÃO PAULO II. Op. Cit., 1998 e CONGREGAÇÃO PARA OS INSTITUTOS DE VIDA CONSAGRADA E AS SOCIEDADES DE VIDA APOSTÓLICA. Op. Cit., 2002.

[5] Cf. RATZINGER. I Movimenti ecclesiali e la loro collocazione teologica. In: Pontificium Consilium pro Laicis. I Movimenti nella Chiesa – Atti del Congresso Mondiale dei Movimenti Ecclesiali, 2011.

[6] Cf. JOÃO PAULO II. Op. Cit., 1996, 38.

[7] Ibidem.

[8] Cf. JOÃO PAULO II. Op. Cit., 1998, n. 7.; FERREIRA. Op. Cit., 2011 e CONGREGAÇÃO PARA OS INSTITUTOS DE VIDA CONSAGRADA E AS SOCIEDADES DE VIDA APOSTÓLICA. Op. Cit., 2002.

[9] Cf. FERREIRA. Op. Cit., 2011, citação retirada de síntese geral de documento, sem fixação específica.

Leia mais: http://www.comunidade-amormaior.com/news/sob-o-olhar-da-vida-consagrada-para-leigos/

-----Pax et Bonnum-----

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